Introdução
A Mão Livre

O que é o desenho? É fundamental estabelecer uma definição para esta pergunta, aparentemente tão simples, no início de um livro sobre desenho. Eu defino o desenho como a interpretação de qualquer realidade, visual, emocional, intelectual, etc., através da representação gráfica.
O aprendizado do desenho baseia-se em conhecer e dominar a gramática e a sintaxe da linguagem visual, empregada na re-presentação, ou seja, conhecer e dominar os elementos que se utiliza quando se faz um trabalho visual. O desenho é a base de qualquer trabalho visual, bi ou tridimensional, e é por isso que seu domínio se torna indispensável para o estudante de artes plásticas.
Através do estudo do desenho, o aluno primeiro conhece esses elementos para depois tentar dominá-los. O desenho de observação é um meio para se conseguir isso, mas é importante não confundir o ensino do desenho com o ensino do desenho de observação. A representação realista num espaço de papel é somente parte do unierso do desenho, pois, através do desenho, podemos usar os pontos, linhas e espaços da linguagem gráfica para comunicar impressões da realidade, sejam elas visuais, emocionais, psicológicas ou intelectuais.
O desenho de observação é sobretudo um meio para se adquirir o domínio sobre os fundamentos do desenho (que não são regras), sobre a percepção visual e sobre o espaço no qual se desenvolve a obra de arte, seja ela bi ou tridimensional, e leva-nos a conhecer todos os elementos que compõem a linguagem gráfica. É um meio para que se conheça a linguagem da arte visual, através de uma investigação da realidade plástica à nossa volta, e para que cada um conheça sua própria maneira de lidar com esta linguagem.
No exercício do desenho de observação desenvolve-se o pensamento analógico e concreto, o senso de proporção, espaço, volume e planos. A sensibilidade e a intuição são aguçadas en-uanto se passa a apreciar melhor os outros elementos da linguagem gráfica: textura, linha, cor, estrutura e composição.
O exercício do desenho realista permite ao aluno adquirir o domínio de todos os elementos da linguagem visual e gráfica, que é essencial para a interpretação da realidade com total liberdade. Proporciona-lhe a liberdade de exercer a sua criatividade como quiser. Com esse domínio, o modo de interpretação é sempre o resultado de uma opção. Sem esse domínio, a criatividade é sempre limitada. Portanto, o aluno sente confiança para experimentar linguagens diferentes e também lhe é facilitado o desenho gestual e expressionista.
A primeira coisa que me motivou, quando pensei em escrever este livro, foi o desejo de valorizar o desenho e resgatá-lo de um emaranhado de noções equivocadas. Percebi que havia uma crescente tendência de confundir o academicismo com o exercício do desenho de observação e o desenho realista. Esta confusão fez com que se estabelecesse o conceito de que o desenho de observação inibe a criatividade. O resultado disso é que muitos estudantes de arte fogem do desenho com medo de perder sua criatividade. O que perdem, com esta atitude, são exatamente os meios para desenvolvê-la. Há inúmeros exemplos de artistas, tanto clássicos quanto modernos - Picasso, por exemlo - que dominavam o desenho de observação e mesmo assim foram criadores de uma arte inovadora e revolucionária.
Não é o desenho que inibe a criatividade, mas uma atitude acadêmica. Quando o desenho de observação é ensinado como se fosse baseado em regras, então, realmente, vai prejudicar a criatividade do aluno, assim como qualquer professor que impõe regras, estilos ou soluções inibirá o aluno na busca de sua própria expressão. O desenho de observação, repito, é um meio para se dominar o desenho, e é somente dominando o desenho que se consegue fazer uma arte completamente livre, onde as soluções são por opção e não por exclusão.
Este livro foi escrito para estudantes de arte de qualquer nível, do iniciante ao universitário. Ficou claro para mim, depois de vários anos como arte-educador, que qualquer pessoa, sem deficiências graves (como a dislexia), pode aprender a desenhar, assim como pode aprender a ler ou fazer contas. Não é fácil, assim como não é fácil aprender a ler e escrever, mas não depende de "dom". No entanto, daí a utilizar o desenho para criar algo significativo, uma obra de arte, é outro problema. O desenho é um dos instrumentos que uma pessoa usa para criar, mas tem que usar com inteligência, sensibilidade, perspicácia e expressividade. A arte é valorizada porque é uma prática elitista, reservada a poucos. Porém, dominando o desenho, a pessoa com pretensões artísticas modestas poderá desenvolver trabalhos expressivos e que lhe darão prazer e satisfação pessoal.
Veremos que o domínio do desenho não depende de habilidade manual, nem de conhecimento de técnicas, tampouco de um olhar diferenciado. Depende de um pensamento diferente. Para poder ver de uma maneira adequada para desenhar, é necessário pensar de uma maneira adequada, diferente do modo utilizado no dia-a-dia.
Lecionando, percebi que o aluno de desenho acaba aplicando este pensamento diferenciado a outras atividades, pessoais e profissionais. Torna-se mais crítico à sua realidade, mais sensível e mais criativo, de forma geral. Suas relações familiares enriquecem-se também. Portanto, percebi que o desenho é um instrumento educacional muito rico, com uma abrangência muito maior do que pensava. A expressão artística e o aprendizado do desenho são um meio para as pessoas enriquecerem-se intelectual, emocional, espiritual e criativamente. Tudo isso coloca a materialização do produto artístico em segundo plano, pelo menos no início dos estudos.
Portanto, um dos aspectos mais importantes deste livro é enfatizar as possibilidades educacionais do ensino do desenho, até fora do âmbito da arte educação.
Estudos recentes, iniciados pelo Dr. R. W. Sperry no California Institute of Technology e continuados em várias universidades no mundo inteiro, indicam como o ser humano pensa. A professora Betty Edwards utilizou esses estudos para criar o conceito "desenhando com o lado direito do cérebro" no seu livro Drawing On The Right Side of The Brain ("Desenhando com o Lado Direito do Cérebro", Edições Ediouro). Este conceito ajudou muito no ensino do desenho de observação, porque realmente precisamos usar os atributos localizados no lado direito do cérebro para desenhar realisticamente. No entanto, os atributos do lado esquerdo também desempenham um papel importante no desenho.
Creio que o lado direito do cérebro é muito pouco desenvolvido porque, além de o hemisfério esquerdo ser o dominante, a educação tradicional tem privilegiado o desenvolvimento dos seus atributos: a lógica, a racionalidade, a abstração, o simbolismo, o pensamento linear, minucioso e analítico, e a concepção verbal, digital-aritmética e temporal. De acordo com o Dr. John C. Eccles, é no lado esquerdo que o conceito do Eu é formado.
Quando desenhamos precisamos pensar concretamente e não, como de costume, simbolicamente ou abstratamente. Queremos saber como são as coisas, visualmente, e não o que representam. Normalmente, avistamos alguns detalhes significantes que nos dão as informações mínimas de que precisamos para decifrar aquilo que estamos vendo. Quando desenhamos, essas informações são insuficientes, então precisamos aprender a ver mais concretamente.
No nosso dia-a-dia o pensamento lógico e racional é o que predomina. No entanto, no desenho, o emprego da lógica pode levar a conclusões totalmente errôneas. A prática do desenho é, por excelência, a prática do pensamento analógico, ou seja, de comparações. Compara-se diferentes tamanhos, espaços e formas, claro e escuro. O desenho é feito de contrastes. É desta forma que decodificamos o mundo tridimensional e o interpretamos de forma bi-dimensional.
O desenho também desenvolve a expressão, a sensibilidade e a intuição. Para quem está desenhando, é o processo no qual está envolvido que é importante e não o produto que resulta desse processo. Para o artista, o prazer está no fazer da obra e não na obra produzida. Para o aluno é importante lembrar isso, porque não se deve preocupar-se com o desenho acabado, mas com o processo de aprendizado e descobrimento. O aluno deve se preocupar com o entendimento e o domínio dos elementos que formam uma obra de arte visual, e aí o produto será uma conseqüência natural desse domínio.
Preocupar-se com o resultado é conseqüência do domínio dos atributos do lado esquerdo do cérebro. O lado direito trabalha com outros atributos, menos importantes para nossas atividades diárias: analogia, síntese, intuição, conceitos concretos, espaciais, geométricos e holísticos. O lado direito também é o lado musical. Portanto, o desenho de observação e a música são o que melhor desenvolvem esse tipo de pensamento, no meu conhecimento, e, então, apresentam-se como excelentes instrumentos educacionais, com abrangência maior do que se supunha.
O seguinte gráfico ilustra o modo de funcionar e pensar de cada hemisfério do cérebro. Percebe-se que as funções de um lado complementam as funções do outro lado.

ESQUERDO DIREITO

Ligação com o Consciente

Sem tal ligação
Abstrato e Simbólico Concreto
Conceitual Intuitivo
Seqüencial-Linear e Minucioso Holístico
Analítico Sintético
Lógico e Racional Analógico
Temporal Síntese sobre o Tempo
Verbal Musical (Quase não-verbal)
Descrição Lingüística Senso Modelar e Pictórico
Concepção Digital Espacial (Geométrico)
(Aritmética e Computação)

Quando o pensamento utilizado no desenho é transferido para outras atividades há um ganho imenso em número de informações obtidas e codificadas que podem ser utilizadas junto com as informações obtidas pelo lado esquerdo do cérebro para se chegar a conclusões melhores.
Também há o ganho cultural, pois o aprendizado do desenho leva a uma melhor apreciação e a um melhor conhecimento da arte, seus períodos e seu desenvolvimento.
Quando o desenho é usado para desenvolver a percepção, a sensibilidade e os atributos do lado direito do cérebro, resultados são obtidos rapidamente. No entanto, quando o objetivo é o domínio do desenho, o processo é mais lento, porque é necessário desenhar muito, repetindo várias vezes os exercícios, que são sugeridos ao final de cada capítulo, até conseguir, primeiro, o domínio dos fundamentos e, depois, das técnicas.
O desenvolvimento de uma temática rica também é demorado, porque isso só é conseguido quando se tem as opções de linguagem e de técnicas a sua disposição, e quando se sabe o que é possível fazer com estas opções.

Métodos

As informações contidas neste livro formam um instrumento educacional valioso se forem trabalhadas dentro de um método adequado. O objetivo do educador e o perfil do aluno é que vão determinar o método adequado para um curso como um todo, e é por isso que não pretendo que este livro seja um substituto para um curso de desenho ou de arte educação.
A intenção principal do livro é apresentar e discutir os elementos que formam a linguagem visual. A ordem escolhida para os assuntos não se constitui em um método, mas com base na observação de que, geralmente, o aluno necessita das informações nessa seqüência.
O aprendizado do desenho é constituído de três partes: fundamentos, temática e técnicas.
No método tradicional, trabalha-se primeiro os fundamentos, depois as técnicas e, finalmente, a temática. No entanto, este método tem a desvanta-gem de ser muito longo, apesar de ser completo, e de isolar a prática do desenho da expressão, por muito tempo, reduzindo o desenho à execução de exercícios.
Percebendo isso, muitos educadores preferem trabalhar primeiro a expressão, depois a técnica e os fundamentos no fim. Na minha experiência, este método é o mais adequado para crianças abaixo de dez anos, pois os fundamentos de percepção só devem ser trabalhados depois dessa idade. No entanto, em adolescentes e adultos geralmente provoca frustração, pois logo sentem a falta dos fundamentos.
Cursos que pretendem ensinar somente técnicas também são falhos, porque é difícil aprender uma técnica quando não se tem uma temática. A expressão é fruto de uma intenção. O domínio de uma técnica só é alcançado quando a expressão é trabalhada junto com a procura de soluções técnicas para materializá-la. Além disso, muitos alunos esbarram na falta de domínio dos fundamentos do desenho, e confundem isso com uma dificuldade técnica.
Tenho desenvolvido um método holístico, no qual trabalho as três áreas ao mesmo tempo. Este método exige um ensino personalizado, porque cada aluno desenvolve uma temática e estuda os fundamentos e as técnicas em função dela. Percebi que, geralmente, quando uma pessoa procura um curso de desenho ou pintura, ela quer se expressar - o que ou como, ela não sabe - e, com paciência, introspecção e ajuda do educador, uma temática surge.
Um problema que pode surgir é o aluno deixar de estudar alguns dos fundamentos, por não necessitar deles para o seu projeto, resultando num aprendizado incompleto. O educador deve estar atento a isso.
No entanto, é importante lembrar que desenvolvi este método para um curso específico de desenho e pintura para adolescentes e adultos. Quando o desenho é trabalhado em outras situações, na escola secundária ou na arte terapia, por exemplo, outros métodos serão mais convenientes certamente, embora as informações aqui encontradas sejam sempre pertinentes.

A Estrutura do Livro

Neste livro não vou abordar o ensino de técnicas, porque acho que cada técnica necessita de um livro próprio. A abordagem de técnicas aqui seria por demais superficial.
Em primeiro lugar, abordarei os fundamentos do desenho. Os fundamentos não são regras de desenho; poderiam ser descritos como o alfabeto da linguagem gráfica. São baseados no conhecimento científico e estético acumulados através dos tempos, desde leis físicas sobre o funcionamento da luz, por exemplo, e estudos sobre a ótica, até conhecimentos psicológicos. Fundamentos podem até ser contrariados, se a melhor solução para uma idéia exigir isso, mas jamais devem ser ignorados. Sempre existe espaço para a "liberdade poética"!
Os fundamentos são os seguintes: composição, proporção, perspectiva linear e tonal, concepção de espaços, eixos, luz e sombra, valor linear e estrutura.
Em seguida examinarei o processo criativo, que é a parte que envolve o desenvolvimento da temática, e também a cor.
A terceira parte deste livro trata do desenho da figura humana. Pode parecer uma contradição dedicar toda uma parte de um livro de desenho à figura humana quando se afirma que o processo de observação é sempre o mesmo, não importa o que se esteja deseão pretendo insinuar que o desenho da figura humana diferencia-se do desenho de qualquer outra coisa, mas, ao contrário, contestar essa noção. A maioria dos livros que tenho visto sobre o desenho apresenta um método que visa facilitar o desenho da figura humana, e, dessa forma, os autores implicam que há uma diferença entre desenhar a figura humana e desenhar qualquer outra coisa. Na realidade, o que os criadores desses métodos querem fazer é facilitar o desenho da figura humana sem modelo.
Quase todos os métodos encontrados em livros atualmente foram desenvolvidos neste século e dirigidos a universitários, que já sabiam desenhar por observação. A intenção era facilitar a ilustração, dispensando o uso de modelos. No entanto, primeiro era estudado o desenho de observação, com modelos.
Com o crescimento da propaganda e da imprensa, no início do século XX, e o aparecimento do desenho em quadrinhos, o ritmo de trabalho dos ilustradores aumentou consideravelmente, o que tornou o uso de modelos impraticável. Para contornar esse problema, começaram a usar bonecos de madeira em vez de modelos e, mais tarde, criaram métodos que dispensaram até o uso dos bonecos. São métodos geniais - para quem já sabe desenhar.
Nos desenhos dos velhos mestres, anteriores ao século XX, percebe-se que o desenho era feito por observação e que o procedimento era outro: sempre analógico (e não partindo de uma simplificação, como um boneco), e partindo de um ponto central em vez de fora para dentro. Quando comecei a desenhar, meu grande interesse era a figura humana, e sempre desenhei dessa forma, iniciando o desenho pelos olhos. Mais tarde, percebi que era melhor iniciar pelo nariz. Aprendi os métodos a que me referi, mas nunca precisei utilizá-los, porque sempre desenhei por observação.
Quando me tornei um professor, notei que os alunos que tentavam desenhar a figura humana por observação, utilizando qualquer um desses métodos, tinham grandes dificuldades; no entanto, conseguiam desenhá-la por imaginação com relativa facilidade. Também tenho notado que os alunos que desenham bem naturalmente, em geral empregam algum tipo de processo analógico e holístico. Foi por isso que resolvi dedicar uma seção à parte ao desenho da figura humana, resgatando uma maneira de observá-la, que, além de ser natural, foi usada pelos maiores desenhistas de todos os tempos: Michelangelo, Rafael, Leonardo da Vinci, Prud'hon, Ingres, Picasso, etc.
Não apresento nenhum dos métodos desenvolvidos para o desenho da figura humana sem modelo porque já existem muitos livros no mercado que fazem isso muito bem e não gostaria de destacar um método em detrimento de outro. Recomendo esses métodos para quem deseja fazer ilustração - mas aprenda o desenho de observação primeiro!
Tudo que se encontra neste livro é resultado da minha experiência, primeiro como aluno, pois, enquanto leciono, sempre me recordo das dificuldades que encontrei quando começava, depois como artista plástico atuante desde 1972 e, principalmente, como arte-educador. Sempre procurei utilizar métodos didáticos que simplificassem o estudo da arte, e muitos são os mesmos utilizados há séculos. Minha intenção é resgatar alguns que foram esquecidos e discutir o enfoque que se dá à arte educação atualmente. O que apresento aqui creio que simplifica o aprendizado do desenho, mas esse livro não é uma coletânea de macetes ou fórmulas mágicas!
O mais importante a lembrar é que a educação artística é um processo que enriquece e proporciona enorme prazer. Não ensino e não escrevo este livro pensando somente no futuro artista plástico. Penso no enriquecimento das pessoas, e se algumas dessas pessoas se tornarem artistas será somente uma das conseqüências desse processo.
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